O Brasil foi o último país das Américas a banir oficialmente a escravatura. Interesses políticos e, principalmente econômicos impediram que a abolição ocorresse antes. Para se ter uma ideia da dimensão do tráfico de escravos, entre os anos de 1757 e 1777 foram trazidos mais de 25 mil escravizados oriundos da África, sendo os principais destinos os estados do Pará e do Maranhão. A primeira proibição do tráfico data de 1831 após pressão da Inglaterra sobre o tema, porém só foi efetiva a partir de 1851. Estes fatos apenas demonstram que a escravidão estava enraizada no Brasil. Estima-se que 4,9 milhões de africanos foram escravizados e trazidos ao Brasil durante o período escravagista. Nenhum outro lugar do mundo recebeu tantos escravizados. Em comparação, nos Estados Unidos, foram 389 mil.1BBC News Brasil – Navios portugueses e brasileiros fizeram mais de 9 mil viagens com africanos escravizados
Com tantos escravizados trabalhando nos engenhos, plantações e fazendas Brasil afora, tornou-se explícita a dependência da mão-de-obra escravagista. Esta não foi uma questão exclusiva do Brasil: países que aboliram a escravatura realizaram planos de alforria que não prejudicasse a economia e, principalmente, que pudesse trazer de volta a dignidade dos ex-escravizados. A Inglaterra, por exemplo, estabeleceu um plano de indenização, financiado pelo governo, aos senhores do engenho e também estabeleceu que os escravizados fossem assalariados até receberem a alforria.
No Brasil, diversos movimentos abolicionistas estavam em ascensão e, sendo que dentre eles, destaca-se a atuação do Doutor Miguel, abolicionista convicto.
Doutor Miguel nasceu aos 10 de dezembro de 1837, no Maranhão, cujo Estado foi um dos maiores receptores de escravizados, tendo boa parte da sua população formada por eles. Nascido em uma família que sempre priorizou o caráter e a preocupação em fazer bem ao próximo, o Doutor Miguel viu em seu pai, o Tenente Coronel Fernando Luiz, o trabalho em prol da abolição, já que este não mantinha escravizados; fato este que causava indignação por parte daqueles que viam a ausência desta mão-de-obra como prejudicial à economia e aos seus negócios particulares.
Sendo um dos Fundadores e Redatores do jornal “O Artista”, o Doutor Miguel publicou neste periódico um plano para que a libertação dos cativos ocorresse de maneira gradual. Interessante notar que esta publicação foi feita na edição de número 34 no ano de 1868, ou seja, muito antes da Lei Áurea (promulgada em 1888). Já no primeiro parágrafo, cumpre observar sua preocupação sobre o assunto:
“Todos concordam que é preciso promover a emancipação, mas o problema é muito sério e difícil de resolver pelas consequências que pode essa medida trazer à nossa sociedade.”
A emancipação não seria apenas um processo de libertação, mas sim a transformação dos cativos em novos cidadãos, como ele mesmo preconizou:
“Parecem-se que o ato da emancipação deve começar no coração dos novos cidadãos, para que eles sejam realmente uteis; é preciso destruir neles os vestígios da escravidão, destruir os pensamentos errôneos inerentes à esse triste estado.”
Neste mesmo periódico ele propõe um plano de emancipação com duração de 25 anos, que evitaria um colapso na agricultura, que era sustentada pela mão de obra escravizada. Este plano seria subsidiado através um Fundo de Manutenção para custear todo o processo. Isto é, seria auto custeado. O plano consistia em educar as crianças e capacitá-las profissionalmente; homens e mulheres seriam remunerados pelo seu trabalho.
Não ficariam devendo favor algum, não causariam prejuízo a outrem nem incorreriam em ociosidade: ficariam enobrecidos pagando seu resgate e adquiririam hábitos de trabalho. 2Álbum de Portugueses e Brasileiros Eminentes, Fascículo XVII, pág.58
O plano estava previsto para ser realizado em algumas etapas, cuja síntese é a seguinte:
(i) Todas as crianças nasceriam livres e após um e ano e meio seriam educadas pelo governo em um prazo aproximado de 14 anos;
(ii) A criação de grandes arsenais para as crianças libertas (com idade de 5 ou 6 anos) onde as crianças aprenderiam a escrever, ler etc. E permaneceriam sob a guarda do poder público até os 21 anos. Estes arsenais seriam subsidiados pelo governo no prazo de 6 a 8 anos, sendo depois também autossustentados pelos salários dos trabalhadores, que também seria usada para alforriar outros escravizados;
(iii) Aqueles que se destacarem poderiam ser contratados como oficiais, fora dos arsenais;
(iv) Alforrio de um certo número de escravizados que ficariam sob a direção do governo por 10 anos e depois teriam o gozo da liberdade;
(v) Estes escravizados libertos seriam arrendados à particulares, onde receberiam salários pelo seu trabalho;
(vi) Que os salários fossem recolhidos ao Tesouro para custear a 1ª etapa e as sobras empregadas em alforriar outros escravizados que ficassem sujeitos a mesma lei de trabalho por 10 anos, a contar da data da liberdade própria.
Cabe mencionar que o Doutor Miguel planejou que as mulheres, ex-escravizadas, também tivessem direito ao estudo e ao trabalho. Preparando-as para aprenderem algum ofício para que tendo condições de “vencerem um salário pudessem se moralizar, sustentar e auxiliar os libertos e o governo na grande obra de emancipação…” 3Jornal “O Artista” edição 34 – 1868
Salienta-se que no ano de 1868, as mulheres, mesmo as que fossem livres, não tinham essas oportunidades.
Ressalta-se que o Doutor Miguel era contra a criação de novos impostos para subsidiar a emancipação:
E o peso sobre os cofres públicos redunda em aumento de impostos. As liberdades compradas pelo governo correspondem a obrigar a população a libertar os escravos do país; não encarar assim é não ver a questão: o dinheiro do governo é o suor do povo..
Observando-se com atenção, nota-se que o Doutor Miguel já tinha um pensamento que seria aplicado somente nos anos 2000 com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) onde “nenhum governante pode criar uma nova despesa continuada (por mais de dois anos), sem indicar sua fonte de receita ou sem reduzir outras despesas já existentes. Isso faz com que o governante consiga sempre pagar despesas, sem comprometer o orçamento ou orçamentos futuros.” 4Dicas e Leis de Responsabilidade Fiscal
Como destacado acima, imperioso observar que a abolição da escravatura de forma planejada e gradual traria muitos benefícios, como ele mesmo explica afirmando que:
A liberdade obtida por essa forma seria nobre, formaria homens de brio e de mérito; custaria poucos fundos aos governos em relação ao que deveria custar por qualquer outro meio; e, para que se realizasse como descrevo, basta que se creem os homens para os lugares e não os lugares para os homens
Em 1869 foi convidado pelo Dr. Tolentino Machado para juntos fundarem a Manumissora Vinte e Oito de Julho – que também é data da independência do estado do Maranhão, que deixou de ser Estado Colonial de Portugal para se constituir em Província do Império do Brasil. Manumissora é um termo derivado do Latim que significa libertar escravizados.
A Manumissora foi a primeira associação estabelecida para este fim em São Luís do Maranhão:
A Sociedade Manumissora Vinte e Oito de Julho foi uma das entidades maranhenses que representou bem o que estava disposto na lei do Ventre Livre. Foi criada no ano de 1869, mas teve seu estatuto aprovado pela presidência da província apenas em 1872, portanto um ano após a Lei do Ventre Livre. Segundo o estatuto, esta sociedade tinha “por fim libertar o maior número de escravas de menor idade, não adultas” (Art. 1º), podendo também alforriar escravos quando “receber subvenções dos cofres públicos.” 5 CRUZ, Mariléia dos Santos. A educação dos negros na sociedade escravista do Maranhão provincial. Revista Outros tempos. Dossiê Escravidão. Vol.6 N. 8. Maranhão 2009.
Muito antes da Lei do Ventre Livre (promulgada em 1871) o Doutor Miguel já trabalhava em prol da libertação dos escravizados, em uma época que grande parte da sociedade era contra. Ele enfrentou todos os preconceitos e foi um grande propagandista da Abolição, seja publicando seus ideais, como também fundando instituições como a Manumissora Vinte e Oito de Julho. Até o ano de 1871, 29 pessoas foram libertas, sendo que, deste total, vinte pessoas eram do sexo feminino.